O Pragmático

Pintura digital de Carlos Paes sobre modelos fotográficos. Posterior caricaturização. Publicada na revista FHM (http://crgpaes.wordpress.com/2009/09/30/papa/).
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Em 29 de Setembro Cavaco Silva fez no Palácio de Belém uma declaração aos portugueses, na sequência da patética história das escutas a Belém, da qual se pode, no mínimo, dizer que não fez sentido ou então que fez um sentido que só a Cavaco foi possível perceber. As únicas ideias claras que expôs foram que o Presidente acha que ninguém fala em seu nome, a não ser os chefes das suas Casas Civil e Militar, que acha que não é crime um membro do seu staff ter sentimentos de desconfiança em relação a outras pessoas e que descobriu as vulnerabilidades dos sistemas informáticos a investidas do exterior. Tudo o mais que quis confidenciar aos portugueses (as manipulações de membros não identificados, mas identificáveis, de elementos do partido do governo no sentido de colarem o Presidente ao PSD e a tentativa de distrair os portugueses dos verdadeiros problemas que preocupavam os portugueses), independentemente da sua realidade, veio ao mundo num discurso desarticulado, irrazoável, às vezes mesmo ilógico. Cavaco Silva não tem o dom da palavra, mas, ao contrário do que é seu timbre, naquela declaração não foi assertivo. Quando se calou, o país emudeceu confuso. Pensei que era aquela a fífia de que Cavaco havia de ficar refém. Afinal Cavaco, o intocável, também se enredava na escura teia da política menos elevada e, quando se defendeu, por inexplicável falta de eficácia, apareceu como culpado.
A 17 de Maio passado, veio com nova declaração, agora sobre o diploma da Assembleia da República que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Acusando os deputados de não se terem esforçado para encontrar uma solução que evitasse “clivagens desnecessárias na sociedade portuguesa”, decidiu não vetar o diploma. O veto politico devolveria a lei ao Parlamento. Cavaco explicou que tal devolução nada mudaria, uma vez que as forças políticas que se juntaram para aprovar o diploma o fariam mais uma vez passar, obrigando o Presidente a promulgá-lo depois. Olhou, mediu, fez umas contas e decidiu não vetar, porque a lei sempre passaria, sendo melhor não perder com ela o precioso e pouco tempo que Portugal tem para discutir e resolver a “dramática situação em que o País se encontra”. Pôs, como disse, a ética da responsabilidade acima das convicções pessoais e promulgou uma lei que nunca quis.
Um sector conservador e católico da direita portuguesa perdeu a cabeça e lançou-se na busca de uma alternativa a Cavaco para a próxima corrida a Belém. Para eles, esta foi a fífia do Presidente. Cedo perceberão que não há na direita uma alternativa a Cavaco, como já se percebeu pela posição do PP e do PSD.
No meio de tudo isto, eu, que não sou uma devota de Cavaco Silva, vejo-me neste estranho papel de o compreender: Cavaco foi igual a si próprio e, sem sobressaltos, foi exactamente o homem que deu a conhecer aos portugueses. Cavaco é um pragmático e, por isso, o que faz, normalmente, é previsível. Cavaco não decide com o coração, Cavaco avalia a utilidade dos seus actos e determina-se de acordo com essa apreciação. Quem esperava de Cavaco um acto inútil, ou não o conhece, ou julgou, errando, que seria influenciado pelo estreito convívio Papal que antecedeu a decisão.
O Presidente deixou claro o que o ser humano Aníbal pensava, o que sentia, o seu desejo íntimo e decidiu em contrário, explicando de forma prática e lógica as razões por que o fez. Entendo-o, mas não deixa de me arrepiar, por ser muito contrário à minha natureza abrir mão de uma convicção.
Discorri sobre esta promulgação da lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e sobre o percurso lógico do raciocínio do Presidente da República que nela culminou, não pela decisão, que era previsível, mas pelo que representa na definição do homem que a tomou, em oposição àquele que podemos antecipar ser o seu grande opositor nas próximas eleições para a Presidência da República: Manuel Alegre (agora apoiado pelo PS, sem que consiga perceber se foi ele que engoliu Sócrates ou se foi Sócrates que teve que o engolir). Poderia Manuel Alegre, o Poeta, promulgar uma lei que ferisse as suas convicções íntimas, nas circunstâncias em que Cavaco o fez?
Publicado no Jornal E, nº 3, de 03/06/2010

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