Um encontro com um contrabandista e um guarda-fiscal já é turismo, por Carlos Dias

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As memórias de um tempo em que o contrabando era o modo de vida das populações na raia alentejana fazem parte da oferta turística do concelho do Alandroal, através da parceria com a empresa Spira, que tenta recuperar estórias que outrora uniam as comunidades de Juromenha e Olivença.
São as "rotas pica-chouriços".
 
António Inácio Vitória tem quase 80 anos.
Deixou o contrabando vai para 25 anos, mas os seus conterrâneos continuam a apelidá-lo de “Corre-Corre” e de “Atleta”.
Entre os anos 60 e 90 do século passado, quando o sustento da sua família era garantido pelos ganhos da atividade clandestina, “fazia uma légua diária a correr”.
Não precisou de explicar porquê: a fuga às brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa quando fazia incursões no interior do território de Olivença, em plena noite, de carga às costas que variava entre os 25 e os 40 quilos, e ao longo de distâncias que poderiam atingir os 60 quilómetros, exigia indivíduos física e mentalmente dotados.
António Inácio Vitória tem quase 80 anos.
Deixou o contrabando vai para 25 anos, mas os seus conterrâneos continuam a apelidá-lo de “Corre-Corre” e de “Atleta”.
Entre os anos 60 e 90 do século passado, quando o sustento da sua família era garantido pelos ganhos da atividade clandestina, “fazia uma légua diária a correr”.
Não precisou de explicar porquê: a fuga às brigadas de carabineiros espanhóis e da Guarda Fiscal portuguesa quando fazia incursões no interior do território de Olivença, em plena noite — cobrindo distâncias que poderiam atingir os 60 quilómetros e levando às costas uma carga que variava entre os 25 e os 40 quilos —, exigia indivíduos física e mentalmente dotados.
 
O contrabando foi, ao longo de séculos, o sustento adicional, ou mesmo único, para muitas famílias que não conseguiam suprir as suas necessidades no trabalho agrícola.
Com a assinatura do Acordo de Shengen, em 1992, que determinou a abertura de fronteiras e a livre circulação de pessoas e bens, a atividade do contrabandista tornou-se obsoleta.
Desse tempo restam as memórias e os testemunhos das derradeiras personagens que mantiveram um permanente jogo do gato e do rato no desempenho dos respetivos papéis: os que viviam do contrabando e aqueles que faziam valer a legalidade.
 
Não havia tufos de matagal, pedregulhos ou buracos, esconderijos de recurso para cargas e pessoas que Inácio Vitória não conhecesse, assim como códigos de conduta, cumplicidades e modos de entreajuda que sustentavam as relações com as comunidades rurais de Olivença.
Natural de Terena, concelho do Alandroal, aos sete anos já guardava gado.
Depois foi moço de recados de uma família rica e só aos 30 anos é que se tornou contrabandista. Nunca foi apanhado pelas autoridades dos dois países.
“Mas ouvi as balas a assobiarem-me aos ouvidos”, recorda.
 
O antigo contrabandista descreve um cenário de medo que se tornara uma constante em cada incursão no território de Olivença, sempre à noite.
Vezes sem conta recorreu a um sinal de alerta em surdina para avisar os membros da quadrilha da proximidade de carabineiros.
Temiam pela sua detenção e a apreensão da mercadoria, o espancamento ou até a morte, varados pelas balas da guarda civil espanhola.
O líder do grupo ordenava, nestas circunstâncias, a rápida dispersão e, cada um por si, teria de alcançar o seu destino e entregar a mercadoria em segurança.
“‘Atão’ não havia de fugir?”
 
Por vezes, os menos afoitos ou fisicamente mais debilitados eram capturados, a carga apreendida e, nalguns casos, eram sujeitos a agressões físicas.
Numa dessas passagens por uma zona rural de Olivença, Inácio Vitória viu um carabineiro capturar um companheiro: “Era pontapés por todo o corpo”, recorda.
Um colega do agressor reagiu, irritado: “Hombre! Isso não é coisa que se faça”.
O infeliz chegou a Juromenha derreado pelas agressões que sofreu, para acabar por ser detido pela Guarda Fiscal, que mantinha uma “excelente” cooperação com a congénere do país vizinho.
 
No regresso a Portugal, eram confrontados com as emboscadas das autoridades portuguesas, que conheciam as “rotas e as subtilezas dos contrabandistas”, revela João José Rosado, de 82 anos, que foi guarda-fiscal para “ganhar mais um pouco”, explicou.
Hoje conta as velhas histórias sentado num banco de pedra junto às antigas instalações da corporação que serviu e ao lado de Inácio Vitória, que perseguiu — nem sempre com êxito —, quando este carregava mercadorias para Espanha.
‘Atão’ não havia de fugir?
Você queria roubar-me o café!...”, recorda Inácio.
 
Hoje mantém uma relação de amizade com um dos últimos guardas-fiscais, então alcunhados de “pica-chouriços” por utilizarem um ferro aguçado com que verificavam se havia algum produto de contrabando camuflado.
Se o dia-a-dia não era fácil para os homens do contrabando, também os “pica-chouriços” se queixavam das condições a que eram sujeitos para desempenhar a sua missão.
José Rosado conta que “fi cava num ponto sem arredar pé durante 12 horas, à chuva ou ao calor”, a vigiar uma determinada área percorrida pelos contrabandistas.
“Cheguei a levar palha para não me esfriarem os pés”.
A vida de um guarda “era viver dentro de um barraco ou debaixo de uma azinheira”, observa.
 
O seu colega na corporação, Francisco Valente, de 78 anos, que foi comandante de vários postos da Guarda Fiscal entre Mourão e Pomarão, acrescenta que habitar nos postos da corporação “era viver como bichos, sem água, sem luz”.
“Quando chovia, ficávamos isolados”, lembra, frisando que boa parte das instalações nem de caminhos de acesso dispunha.
 
Quem pagava era o Nabeiro
Prender os infratores e apreender a carga era a missão da guarda, que aplicava uma multa.
“Mas, quando a carga era café, quem a pagava era o (Rui) Nabeiro”, diz José Rosado.
“Contudo, tínhamos ordens verbais para facilitar” e, por vezes, “fazíamos por não ver”, conta.
“Não queríamos apanhar os contrabandistas.
Disparávamos três tiros para o ar.
Eles fugiam e nós ficávamos com a mercadoria”, que depois era leiloada, sublinha Francisco Valente, dando um exemplo: “Uma vez, deparei-me com um dos contrabandistas tão perto de mim que ficou com vergonha em fugir. Tive que lhe dizer: ‘Desaparece!’, frisando que não era propósito da guarda prender os contrabandistas”, assume o antigo “pica-chouriços”.
 
Os produtos contrabandeados entre os dois países, entre os anos 60 e 90, eram de tal forma variados que nem a imaginação mais fértil os abarca a todos: louças de pyrex e esmaltadas, rebuçados, chocolates, calças de ganga, aspirinas e outros medicamentos, perfumes, tabaco, roupas, toucinho, tripas de porco, pneus, peças de automóvel, barras e folhas de cobre ou gado.
E, claro, café, o produto mais cobiçado e “transaccionado” de Portugal para Espanha desde a Guerra Civil espanhola.
Com a abertura das fronteiras no início dos anos 90, o contrabando praticado durante séculos pelas comunidades rurais localizadas na raia entrou em declínio, tornando dispensável o elevado efectivo da Guarda Fiscal concentrado ao longo da fronteira entre os dois países ibéricos.
Só na província de Badajoz, estavam instalados 26 postos distanciados entre si apenas seis quilómetros. Em território português, a densidade de efectivos da Guarda Fiscal era equivalente.
 
O abandono dos postos acelerou o despovoamento dos montes e das comunidades fronteiriças.
A aldeia de Juromenha, que já foi sede de concelho no século XIX, tinha, nos anos 60 do século passado, cerca de 1500 habitantes. Hoje, a população é inferior a uma centena de pessoas.
 
O lendário Zé Lagarto
A povoação de Juromenha foi uma das comunidades nevrálgicas no apoio às actividades associadas ao contrabando e de onde eram originários contrabandistas cujas histórias de vida são hoje quase lendárias.
O mais famoso — Joaquim José Lagarto — “era o diabo”, diz António Inácio Vitória, que com ele conviveu e a quem viu agarrar na cabeça de um carabineiro para a enfiar num buraco no chão em território espanhol.
O sociólogo espanhol Eusebio Medina Garcia destacou “Zé Lagarto” no livro que escreveu com o título Contrabando na Raia de Portugal, publicando uma entrevista à personagem que mais vincou o espírito contrabandista.
 
Começou a sua actividade clandestina aos 16 anos e esteve várias vezes preso.
Aguentava três dias e três noites sem comer nem beber, uma faceta de que mais ninguém se podia orgulhar, particularidade que Inácio Vitória confirma, reconhecendo-lhe “valentia, lealdade e capacidade de liderança”.
 
Numa das incursões em território espanhol, um grupo de 14 pessoas caminhava por um trilho de cascalho, mas o último da fila era um pouco surdo e batia com demasiada força o cajado no chão, quando a prudência impunha o silêncio.
“Zé Lagarto” irritou-se com o “mouco” e envolveu-se numa luta com o “barulhento” companheiro, felizmente sem consequências.
 
O líder dos contrabandistas transportava cargas de 40 quilos de café para Mérida, a mais de 80 quilómetros de Juromenha.
A distância era percorrida durante três noites e, de dia, os contrabandistas aguardavam, escondidos, que a escuridão regressasse, para prosseguir a caminhada. Ganhava dois euros (400 escudos) pela tarefa, enquanto um trabalhador agrícola auferia 3,5 cêntimos (7,5 escudos) por um dia de trabalho nos anos 60 do século passado.
 
Outra das figuras que marcaram o imaginário das comunidades raiana, alcunhado de “Patalarga”, era também português e residente na Juromenha.
No final dos anos 70, atravessava o Guadiana em barcos de que era proprietário e calcorreava as pequenas aldeias de Olivença, na companhia do filho de 13 anos, para vender café, toalhas, imagens de Nossa Senhora de Fátima, jogos de damas e de xadrez, e até peças de automóveis e de camiões.
As pessoas nutriam por ele simpatia e confiança, a ponto de lhe facultarem os palheiros para dormir.
Sempre atento e cuidadoso, e contando com a cumplicidade dos oliventinos, nunca foi detido pelos carabineiros nem lhe foi apreendida mercadoria.
Deixou o contrabando com a abertura das fronteiras e acabou os seus dias a guardar um rebanho de ovelhas nas margens do rio Guadiana. Morreu em 1996,  com 86 anos.
 
A rota “Pica-Chouriços”
A Câmara do Alandroal, em parceria com a empresa Spira, especializada em projectos de revitalização patrimonial, está a recuperar a rota “Pica-Chouriços”, assim designada na atualidade, que era utilizada pelos contrabandistas em território português.
Começa junto ao antigo posto da Guarda Fiscal na aldeia de Montejuntos e segue para jusante, sempre paralela à albufeira de Alqueva, ao longo de três quilómetros.
O coordenador operacional da Spira, Fernando Moital, disse ao PÚBLICO que o objectivo é “dar a conhecer os trajectos usados pelos contrabandistas no Alandroal”.
A ideia de recriar esta rota, que dará aos visitantes a oportunidade de ouvir os testemunhos dos contrabandistas e dos guardas fiscais, surgiu na sequência do levantamento histórico e patrimonial que a empresa elaborou da antiga Guarda Fiscal.