Relativamente ao artigo do director do Museu Municipal de Estremoz (DMME), inserido no nº 740, de 24 de Junho, deste jornal – “Ainda bem que não passa de um sonho”, revisitado” – em primeiro lugar gostaria de agradecer ao seu autor pelo esforço de promoção da minha pessoa. Na realidade eu não sou Dr., mas educador de infância, e foi no exercício dessas funções, ao longo de muitos anos, que me aproximei das problemáticas ligadas ao património museológico e à museologia. Mas enfim, nós, portugueses, temos este hábito provinciano de distribuir títulos de forma generosa a qualquer um.
Como provinciano é o argumento de continuar a designar Museu da Alfaia Agrícola à Colecção da Alfaia Agrícola de Estremoz (CAAE), para não passar a mensagem de diminuição de categoria, conforme é referido no mesmo artigo – como se o essencial fosse a forma e não a substância, como se os museus não nascessem de colecções [1].
Aliás, esta questão da(s) colecção(ões), neste caso da CAAE, parece suscitar algumas dúvidas. Enquanto DMME fala de colecções, eu insisto na utilização do termo no singular – colecção. Não se pense com isto tratar-se de um problema gramatical. Pelo contrário, trata-se de um problema de semântica com diversas implicações.
Em primeiro lugar há que considerar a intenção do(s) colector(es), a pessoa, ou pessoas, que recolheram o espólio que constitui a colecção: embora talvez não tivesse suficientemente explicitado pelo(s) próprio(s), a intenção de tamanha recolha era a preservação da memória da actividade agrícola da região de Estremoz.
Implicitamente, o que aquelas pessoas fizeram, ou pelo menos deram um primeiro passo nesse sentido, foi a transformação dos objectos: reuniram objectos / artefactos que haviam sido criados para determinadas funções (económicas e sociais), para virem a assumir outras funções, não tomados isoladamente, mas integrados num conjunto, a partir do qual se constrói uma narrativa da memória social de uma comunidade, que se materializa na exposição.
É esta mudança de função do objecto, no caso presente, de objecto utilitário / instrumento de trabalho agrícola, para objecto significante, que constitui uma das funções dos museus, e não só.
Por isso que a materialidade dos objectos é importante – quando a matéria de que os objectos são feitos deixa de existir, ou atinge um nível de degradação muito elevado, perde-se também a possibilidade de reconstruir os significados que eles encerram.
No caso da CAAE, a quase totalidade do seu espólio constitui um todo, que nos permite testemunhar e interpretar os trabalhos agrícolas, que completam o ciclo desde a limpeza e preparação da terra para a sementeira, passando pela monda, a ceifa, a debulha, a selecção das sementes para o ciclo seguinte, além de outras actividades paralelas, e factos sociais, directa ou indirectamente relacionados.
É um facto que, do ponto de vista da classificação dos artefactos, eles podem ser “arrumados” de maneira diversa. Por exemplo: preparação da terra, colheita, pastoreio, alimentação, transporte, vinha, azeite, recheio doméstico, iluminação, miniaturização, etc. [2
Mas não é por isso que, como nos quer fazer crer DMME, se venha a falar de colecções.
A CAAE constitui uma unidade, suficientemente coerente apesar da sua extensão, representando este facto uma mais valia, conforme tem sido reconhecido por especialistas que a visitaram.
Afinal, esta divergência entre chamar-se colecção ou colecções ao espólio da Alfaia Agrícola de Estremoz é mais profunda do que parece a distinção entre singular e plural. No primeiro caso – colecção – centramo-nos numa abordagem dos significados que os objectos / artefactos encerram, que remete para a (re)construção de identidades; no segundo caso – colecções – apenas para os aspectos funcionais desses mesmos objectos / artefactos quando eles ainda estavam integrados no circuito da produção.
Não se trata, por isso, de confusões ou imprecisões, mas de concepções museológicas bem distintas, em relação às quais há que fazer opções.
No mesmo artigo, DMME evoca o meu silêncio nos últimos dez anos. Mais uma vez parece que está mal informado, até porque algumas das actividades educativas desenvolvidas pelo Museu Municipal, ao contrário do que reclamou, não foram da sua inspiração. E, em relação à CAAE, DMME naturalmente era conhecedor dos estudos e trabalhos que desenvolvi [3]. Como director do Museu Municipal e igualmente responsável pela CAAE, alguma vez, nestes últimos dez anos, como seria natural, e até obrigação, chamou ou pediu a opinião a alguém? Promoveu alguma iniciativa para avaliação da situação em que aquela colecção se encontrava e procurar soluções? E tem o desaforo de vir criticar pessoa que não tendo qualquer vínculo com o Município, ou qualquer mandato, não tenha, por sua iniciativa espontânea, intervido na preservação da CAAE. Parece que não está a ter bem noção das responsabilidades.
Não vou entrar mais na resposta aos argumentos evocados por DMME, pela razão que não merecem… e até o diminuem. A observação da situação em que se encontra a CAAE, de que o próprio DMME deu testemunho, e do imóvel que a contém, falam por si.
Para terminar não posso deixar passar a insinuação que me é feita de falta de honestidade intelectual, para a devolver inteiramente à procedência.
Junho de 2010
[1] - Branco, Jorge Freitas; Oliveira, Luísa Tiago – “Ao Encontro do Povo II – A Colecção”, Celta Editora, 1994.
[2] - Classificação de acordo com a Société Internacional d’ Ethnologie et de Folklore (SIEF).
[2] - Classificação de acordo com a Société Internacional d’ Ethnologie et de Folklore (SIEF).
[3] - Silva, Pedro Nunes da - “Contributos para a transformação da Exposição da Alfaia Agrícola em Museu” (1994); Silva, Pedro Nunes da – “Alfaia Agrícola de Estremoz – contributos para a sua preservação” (1995); Silva, Pedro Nunes da , Pacheco, Ruy Zagalo – “Colecção da Alfaia Agrícola – Catálogo Descritivo” (1997). Todos estes trabalhos estão depositados na Biblioteca Municipal de Estremoz.
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