Ainda a Irlanda...


Após a resposta de João Miguel Tavares, Hugo Mendes volta ao tema relembrando alguns aspetos que considera incorretos e relançando o debate...

Espetacular nos argumentos coligidos e apresentados... e na correta explicação...
 
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por Hugo Mendes, em 24.11.13
 
João Miguel Tavares, respondeu ao meu post.
 
A propósito, umas breves notas:
 
1. Sobre os €28 mil milhões do ajustamento irlandês referidos no artigo do FT, está esclarecido o lapso cometido.
Longe de se tratar do valor total do corte na despesa, é o montante global que ascenderá o pacote de medidas que reduzem a despesa e aumentam a receita entre meados de 2008 e fim de 2013. Como é lógico, isto faz uma enorme diferença.
 
2. João Miguel Tavares considera a austeridade irlandesa mais "inteligente" porque cortou fortemente na despesa.
Continuo a achar a dicotomia "corte na despesa = bom / aumento de impostos = mau" perigosamente redutora.
A avaliação que fazemos da composição do ajustamento depende de inúmeras questões: para além daquelas de cariz normativo e ideológico, sobressaem as que dizem respeito às consequências económicas e sociais das escolhas de política orçamental - em particular, do valor dos multiplicadores que os cortes de despesa e o aumento de impostos assumem em economias tão diferentes como são a portuguesa e a irlandesa (esta, por depender menos da procura interna, sobrevive melhor a choques de austeridade), que serão muito provavelmente bem diferentes.
Aquilo que, mesmo sob um certo prisma favorável à austeridade, pode parecer "inteligente" numa economia pode ser particularmente "estúpido" noutra.
 
3. Na questão sobre se a Irlanda começou - de forma “inteligente” - a cortar na despesa, as coisas são um pouco mais complicadas do que João Miguel Tavares menciona.
O gráfico seguinte, retirado do relatório do FMI relativo à 11ª avaliação do programa irlandês, mostra como as medidas se distribuem entre o lado da despesa e da receita entre 2008 e 2013.
 
Embora as primeiras medidas – do lado da despesa – tenham sido tomadas (na segunda metade) de 2008, o ajustamento arranca verdadeiramente em 2009.
Começou pelo corte na despesa?
Não.
A primeira decisão do governo irlandês foi, no orçamento de 2009 (apresentado em outubro de 2008), a de aumentar quase todos os impostos sem praticamente tocar na despesa (imagem retirada deste documento).
 
 
Porém, o sério agravamento da economia nos meses seguintes obrigou o governo a mais dois pacotes de medidas separados apenas por dois meses.
No primeiro, em fevereiro (o 'The Financial Emergency Measures in the Public Interest Act 2009'), o governo avançou com um conjunto de medidas no valor de €2 mil milhões - agora bem mais assentes na redução de despesa.
É neste momento em que é feita a primeira redução no salário dos funcionários públicos (através da Pension-related deduction from the remuneration of public servants).
Dois meses depois, em abril, apresentou um orçamento retificativo para 2009, onde reforçou as medidas de consolidação - com as medidas de lado da receita a valerem mais do que as que visavam a redução de despesa (ver imagem retirada deste documento).
 
 
Foi preciso chegar a 2010, depois de quatro rondas de medidas (verão/2008; outubro/2008; fevereiro/2009; e abril/2009), para o governo preparar um orçamento quase só assente na redução de despesa - e mesmo assim os salários só valem €1000 milhões dos €4000 milhões de consolidação.
No discurso de apresentação do orçamento, o Ministro das Finanças diz que “we have reached the limit” [do aumento de impostos].
Ou seja: até este momento, a estratégia do governo irlandês parece ter sido a de, à medida que se sucediam as rondas de austeridade, ir reduzindo despesa e aumentando impostos. Não encontro aqui nenhuma predisposição nem estratégia para dar prioridade a um ajustamento concentrado na redução de despesa.
Curiosamente, no parágrafo seguinte sobre o "limite" do aumento de impostos, Brian Lehinan anuncia uma reforma do imposto sobre o rendimento para o ano de 2011, com o objetivo de alargar a base fiscal e, ao mesmo tempo, reforçar a progressividade.
 
Conclusão: em 2009, o corte na despesa teve a mesma dimensão que o aumento de receita; em 2010, a consolidação foi efetivamente maior do lado da receita – mas nos dois anos convém ter em conta que uma parte importante da redução de despesa é redução de despesa de capital.
Assim, na redução de despesa, 2/3 terá sido despesa corrente e 1/3 redução de despesa de capital (a Irlanda era em 2008, curiosamente para um "modelo liberal", o país do zona euro com mais investimento público em % do PIB, com um valor que era o dobro da média europeia: 5,3% vs. 2,6%; em 2013 este valor foi cortado para 1,8% do PIB, inferior à média da zona euro de 2,1%).
 
Resumindo, nas minhas contas de guardanapo a partir dos diferentes orçamentos, o corte na despesa corrente deverá valer perto de 40% dos €28 mil milhões de ajustamento, com o peso do corte de salários e pensões a representar cerca de 20% no total das medidas de consolidação na Irlanda.
Ora, entre 2011 e 2013, o peso dos cortes de salários e pensões nos €24 mil milhões em Portugal não me parece andar longe disto.
A diferença entre os dois países estará sobretudo no facto de a Irlanda ter comprimido brutalmente o investimento público, enquanto que Portugal aumentou a carga fiscal, sobretudo o IRS (que sempre garante alguma progressividade no esforço).
 
Sublinho, porém, aquela que me parece ser a ideia fundamental: mais do que a composição do ajustamento, a diferença essencial entre o que se passou em Portugal e na Irlanda é que se retiraram €24 mil milhões a uma economia mais dependente da procura interna em apenas 3 anos e €28 mil milhões a uma economia mais aberta ao exterior ao longo de 5 anos e meio.
Sobretudo, no decurso do PAEF irlandês não se duplicou a austeridade: o plano inicial de redução de despesa/aumento de impostos foi razoavelmente seguido e ninguém foi "além da troika".
 
4. João Miguel Tavares pergunta sobre o impacto dos apoios ao sistema financeiro nos défices orçamentais em Portugal.
Há uns meses, a Comissão Europeia fez precisamente essas contas nesta publicação.
Os dois gráficos seguintes, dela retirados, mostram o impacto orçamental entre 2008 e 2011, primeiro, e o impacto em 2012, depois:
 
 
Assim, ao contrário do que tipicamente se pensa quando se evoca o BPN, BPP, etc., vemos que a recapitalização da banca pesou relativamente pouco nos défices dos últimos anos em Portugal. 2010 foi o ano mais penalizado: o défice ficou nos 8,5% em vez dos 9,8% se descontarmos o apoio à banca. Em 2011 e 2012 (bem como acontecerá em 2013, com a recapitalizaçao do BANIF), o défice foi penalizado em cerca de meio ponto percentual do PIB.
 
5. Na medida em que uma das questões do artigo original de João Miguel Tavares era sobre se a Irlanda se tinha sabido "defender" melhor perante as instituições internacionais, vale a pena lembrar o que aconteceu no início de 2013, que foi, na prática, uma reestruturação da sua dívida pública.
Em fevereiro passado, o Governo conseguiu uma troca de dívida que consistiu na substituição das notas promissórias emitidas (num total de €25 mil milhões) em 2010 para recapitalizar dois bancos e que eram detidas pelo Banco Central irlandês por uma emissão de títulos de longo prazo com maturidade média de 34-35 anos. Esta notícia resume o impacto nas finanças irlandesas:
 
"Segundo o documento divulgado pelas Finanças haverá uma redução das necessidades de financiamento na ordem de 2,3 mil milhões de euros no primeiro ano seguida de 20 mil milhões no conjunto dos dez anos seguintes. Ou seja, uma redução importante da necessidade de ir ao mercado primário emitir dívida para cumprir o pagamento de uma tranche anual de 3,1 mil milhões mais juros que se estendia até 2023, com um valor residual de 2,8 mil milhões a pagar em 2024 e 2025. O custo total das promissórias - capital e juros - subia a 47 mil milhões de euros. "


 
Como escrevia o FMI no relatório relativo à 9.ª avaliação do PAEF irlandês (pág.5): "Ao reduzir as necessidades de financiamento na próxima década em cerca de 1,3% do PIB por ano, esta transação ajudará o regresso da Irlanda ao financiamento de mercado".
Ao mesmo tempo, permite que o orçamento poupe, pelo menos até 2018, €1000 milhões/ano (ver gráfico retirado do mesmo relatório, pág.13).
  
 
 
Poucos se lembrarão hoje desta reestruturação da dívida irlandesa.
Só para comparar, €1000 milhões foi quanto valeu o corte de salários dos funcionários públicos irlandeses em 2010.
 
6.  A ideia de que os irlandeses cortaram valentemente na despesa é a explicação muitas vezes implícita para o caso de “sucesso” em que a Irlanda se transformou, agora confirmado na decisão de o país ter optado por um “corajoso” regresso aos mercados sem o apoio de um programa cautelar (esta continua a parecer-me uma historia mal contada, mas isso é tema para outra conversa).
 
Antes disto, o "sucesso" era medido pelo regresso ao crescimento económico desde 2011. Já sabemos que o PIB é um mau indicador para avaliar a riqueza irlandesa, e que o Produto Nacional Bruto (PNB) é mais rigoroso, por expurgar o efeito de repatriação dos lucros das multinacionais (responsável pelo conhecido por efeito soufflé que insufla o PIB; em finais dos anos 80, o PNB irlandês valia 97% do PIB, enquanto que no início dos anos 2000 valia apenas cerca de 80%).
 
Se o PIB cresceu 2,2% em 2011, estagnou nos dois anos seguintes: variou 0,2% em 2012 e estima-se que cresça apenas 0,3% em 2013. Por isso, como o gráfico seguinte mostra, embora ainda muito abaixo do valor de 2008, o PIB (real) estará no fim de 2013 acima do valor de 2009. 
 
 
O que aconteceu ao PNB? Em 2014 estará, segundo as estimativas, ainda €3 mil milhões (2%) abaixo do valor de 2009
A divergência entre o PIB e o PNB não é tão ampla em Portugal (o rácio entre o PNB e o PIB é cerca de 0,95), mas se fizermos o mesmo exercício vemos que se estima para 2014 que a pequena subida do PIB não seja acompanhada pelo PNB, que continuará a cair.
 
  
 
Esperemos que, no caso de Portugal, a “retoma” seja mais robusta e evidente que a irlandesa. Se o caso irlandês é um “sucesso”, significa que nos congratulamos com uma situação de prolongada estagnação.

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